sábado, 15 de agosto de 2015

EFA ANO 60: O trem que se confunde com a história do Amapá

Daqui a dois anos a Estrada de Ferro do Amapá vai completar 60 anos de atividade no estado, em meio a incertezas sobre o futuro da mais importante ferrovia da Amazônia.

Cleber Barbosa
Da Redação

O Amapá passou a fazer parte do noticiário internacional a partir da descoberta das jazidas de manganês na Serra do Navio, ainda nos anos 40. Coube a um empresário brasileiro a missão de extrair o minério – tido como estratégico – naquela época do esforço de guerra. Para isso era preciso construir a logística mina/ ferrovia/porto. Nascia aí uma valiosa ferramenta de transporte de cargas e passageiros, a Estrada de Ferro do Amapá (EFA), inaugurada em 1957 e existente até hoje.
Foram décadas e décadas de trabalho, suor e lágrimas em cima dos trilhos da velha ferrovia, a única até então de bitola standard (1,435 m) no Brasil. Ela recebeu visitantes ilustres, entre eles alguns presidentes da república, como Juscelino kubitschek, que esteve no Amapá para o primeiro embarque de minério, em 10 de janeiro de 1957.
No dia 28 de maio de 1958, uma viagem comemorativa do trem da EFA comemorava a marca de 1 milhão de toneladas de manganês transportado, menos de dois anos do início das operações férreas. A ferrovia sempre registrou números impressionantes, pois sua construção iniciou em março de 1954 e foi concluída em janeiro de 1957, quase três anos depois.
Era a única ligação entre a capital Macapá e a cidade de Serra do Navio, onde uma vila modelo foi erguida, aos moldes norte-americanos, mas com soluções para problemas amazônicos, como o clima quente e os mosquitos. Pelo trem viajavam do doutor ao operário da empresa, só que separados por vagões distintos, desde o executivo 401, para a chefia, até o mais popular, o 405, o famoso “chega pra lá”.
A viagem na sexta-feira de Serra do Navio para Santana era a “baixada” e a volta na noite de domingo era a “subida”. Uma rotina exaustivamente repetida toda semana por quem não tinha casa na Serra.

Antunes, Ralph e Quintas, o idealizador, o construtor e o salvador

Três personagens distintos, ao seu tempo, fazem parte da história da Estrada de Ferro do Amapá. O primeiro foi seu idealizador, o empresário Augusto Trajano de Azevedo Antunes, que embora tenha feito fortuna com seu faro empresarial para prosperar negócios pelo país, tinha um envolvimento afetivo com o projeto Icomi, a partir do qual seu império começou a ser erguido. Era tido como um visionário, um homem à frente de seu tempo. Quando nem havia no país uma legislação ambiental como a que se tem atualmente, ele já determinava que os mais rígidos instrumentos de controle ambiental minimizassem os efeitos e os impactos à natureza pelo seu projeto industrial. Havia qualidade de vida nas vilas que ergueu para abrigar seus colaboradores, tanto na Serra do Navio como na Vila Amazonas, em Santana. Pagava planos privados de previdência, o que até hoje garante uma complementação às aposentadorias de quem fez carreira em sua empresa. À certa altura, numa de suas muitas visitas ao projeto, indagou a seus executivos sobre o que estavam fazendo pelas comunidades espalhadas ao longo da linha férrea, quando então decidiu que deveriam comprar a produção agrícola daqueles agricultores. “Surgiu ali o ‘trem dos colonos’, que parava a cada comunidade para adquirir, hortaliças, frutas e o que fosse possível aproveitar em nosso mercado”, diz José Ortiz, antigo superintendente da Estrada de Ferro. Augusto Antunes morreu em 1996, no Rio de Janeiro, onde viveu praticamente recluso no final da vida, depois de se afastar dos negócios. Ele tinha 89 anos.

O CONSTRUTOR
Se Augusto Antunes tinha paixão pela obra edificada no Amapá, o que dizer de Ralph Medellin, um mexicano naturalizado americano que dedicou simplesmente toda a vida à ferrovia que ele ajudou a construir? Sim, ele até contou uma pequena mentira para poder viajar dos Estados Unidos até o Amapá, pois a poderosa Bethlehem Steel queria gente que falasse português no projeto que acabara de fechar com o novo sócio, Antunes. “Ele queria na verdade conhecer o Rio Amazonas”, diz a viúva de Medellin, dona Madalena, que ainda hoje luta para conseguir que o estado repasse o dinheiro que Ralph gastou para manter a EFA funcionando. Sim, ele já no fim da vida assumiu as operações da ferrovia, mesmo consumindo o próprio capital da família. É que no final dos anos 90, após a Icomi anunciar a paralisação da lavra de minério, alegando que as minas estavam exauridas, o Estado se recusava a receber a ferrovia, conforme previa o contrato com a União. Uma longa batalha judicial teve início e nesse lapso temporal até uma definição sobre a propriedade dos trens, foi Ralph Medellin quem a manteve a ferrovia funcionando desde então.
Até a semana de sua morte Ranph permanecia dando expediente na EFA. Ele faleceu em 2008, vítima de insuficiência respiratória, aos 84 anos de idade. Na ocasião, recebeu uma honrosa despedida. É que havia manifestado desejo de ter o corpo cremado e as cinzas atiradas no Rio Amazonas – o mesmo que o fez largar os Estados Unidos. Na ocasião, sua esposa e filhas o levaram de avião até Serra do Navio e de lá, num pequeno vagão chamado Litorina, ele fez uma última viagem na ferrovia que ele próprio havia construído. Na velha estação de Santana, uma viatura do  Corpo  de Bombeiros transportou a urna com seus restos mortais até a Capitania dos Portos, onde houve uma celebração religiosa. Depois, por também ser veterano da Marinha dos Estados Unidos, foi levado por uma corveta da Marinha do Brasil para finalmente encontrar o descanso eterno, cabendo à esposa Madalena a tarefa de atirar suas cinzas no rio, fechando um ciclo de dedicação, profissionalismo e porque não dizer, amor à Estrada de Ferro.

O SALVADOR
Foi num cenário de incertezas sobre o futuro da ferrovia que, em 2002, o então procurador-geral do Ministério Público do Amapá, Jair Quintas, ao seu estilo discreto, achou o caminho das pedras, por assim dizer, sobre a melhor destinação da EFA. Ele acabara de visitar a Estrada de Ferro Oeste de Minas, numa rápida viagem entre São Joião Del Rey e Tiradentes, quando decidiu criar um Grupo de Trabalho destinado a estudar uma solução para o problema. “Vimos ali o Museu Ferroviário, inclusive o vagão que era de dom Pedro II, totalmente restaurados. E olha que era uma ferrovia com quase trezentos anos, então não poderíamos deixar que a do Amapá, com pouco mais de cinquenta anos, se acabasse”, recorda o procurador.
E foi graças a essa visão dele que uma solução foi encontrada, algum tempo depois. Associações de Turismo Ferroviário e outras empresas mineradoras demonstraram interesse em arrendar o trem. Uma decisão judicial definiu a propriedade como sendo da União, mas caberia ao Estado ser o fiel depositário. Um termo de arrendamento foi lançado e a empresa MMX assumiu o papel de recuperar a ferrovia, investindo na sua restauração. Os trilhos foram recuperados, dormentes substituídos, vagões e locomotivas arrumados e o transporte de cargas e passageiros retomado. Outras duas recentes mudanças de controle aconteceram, uma para a Anglo American e outra para a Zamin Ferrous, que desde a paralisação de suas operações, deixou cair o padrão da ferrovia. O estado agora estuda retomar a concessão e lançar um novo certame que possa garantir que a saga de Antunes, Ralph e de Quintas, não seja ignorada.

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